Wednesday, July 11, 2007

Forma de Gelo – Parte I

O Assassino Desperto
Era sempre o mesmo raio de sol toda manhã. Seria o mesmo raio, ou quem sabe outro sol? Não saberia mais distinguir, mesmo assistindo o raio iluminar uma fração do cômodo todos os dias, na mesma hora e da mesma maneira, todas as manhãs. Mas seria uma manhã o que acontecia no lado de fora daquelas paredes? A noção de tempo havia se liquefeito em sua mente há... Havia muito tempo. No início imaginava quantos meses – ou anos – ele poderia estar ali, mas com o empilhamento dos dias e a constante perda de raciocínio lógico, a última coisa que importava era a quantidade de tempo que estava isolado naquela peça.
Enquanto olhava as mesmas paredes esbranquiçadas dia após dia, um pensamento precedia qualquer outro: “O dia chegará”. Antes de arquitetar o jeito de levantar, como faria para se alimentar e quanto iria escrever, a frase inundava sua cabeça e repetia-se até transformar-se num mantra de palavras sem sentido. “Um dia o dia chegará”, era sua frase derradeira dita em voz alta (ou imaginava dizer, já que a voz humana perde a característica quando não é utilizada regularmente) antes de iniciar o que fazia sempre.
Anos mais tarde tentaria descrever o local que ironicamente chamava de “casulo”, mas era inútil. Ninguém realmente acreditaria como ele viveu aquele tempo todo – mas quanto tempo foi na verdade? Uma mesa pequena e que só podia ser utilizada se a pessoa estivesse de joelhos ou sentada no chão; Folhas incontáveis e canetas; Sobras de alimentos (os quais ninguém sabe como eram adquiridos); Uma porta marrom muito grande e de complexo encaixe na parede e uma janela de 35 cm de altura por 15 cm de largura. Tudo muito bem distribuído em um cômodo de proporções diminutas, e que poderia estar em qualquer lugar do planeta, mas onde estaria aquela peça, aquele casulo?
Após o mantra a caneta começava a cumprir sua função ferozmente. Folhas eram castigadas por palavras rancorosas e sem esperança. Mas algumas vezes um plano era arquitetado, mesmo que este fosse descrito de maneira enigmática, como se nem sua própria mente fosse digna de confiança.
“Sentirão o que eu sinto, um por um, mesmo que acreditem que esteja morto. Aliás, não há nada mais aterrorizante do que um homem que ressurge do mundo dos natimortos sedento pelo reajuste de contas. Por enquanto deixo a bactéria de nome científico DÚVIDA alimentar-se do restolho de consciência dos meus inimigos, e logo um vírus vai se alastrar, um vírus que eu gosto de chamar de ATENTADOS, nome científico TERROR. Eu não tenho mais nada para perder, e vocês saberão exatamente como é viver assim. Um por um.”
E assim as horas deitavam umas por cima das outras, e quando todas estavam perfeitamente empilhadas, largava a caneta, se exercitava até sentir o sangue ferver por completo e deitava exausto pelo esforço físico e mental. E então quando deitou presenciou uma cena que chamaria, anos mais tarde, de “estopim”.
“... E então deitei, olhando pro ponto onde a parede esquerda se transformava em teto. Quase dormindo, percebi uma espécie de rede fina, transparente no local. Era uma teia de aranha! O pequeno animal estava arisco, espreitando pelo momento crucial... Identifiquei-me com ela imediatamente! Devia estar ali há dias, mas a presa não vinha. Mesmo assim ela estava ali, mente focada e corpo atento.
Após um tempo de observação, um pequeno animal voador começa a passear pelas redondezas da teia! Neste ponto desconfiei que minha mente brincava com meus sentidos, mas resolvi jogar o jogo do devaneio. Não demorou muito para a fina rede cumprir seu papel e atrair o inseto. A aranha não leva mais do que um piscar de olhos para atacar e finalmente cumprir sua missão planejada. Depois de ver todo seu processo de ataque e alimentar, fiquei feliz! A aranha parecia estar sentindo o mesmo que eu, tanto que saiu da teia e ficou na parede, despreocupada. E em menos que um piscar de olhos, uma lagartixa marrom engoliu-a inteira, sem cerimônia, ritual ou batalha, e desapareceu.
Agora eu sei exatamente o que vou fazer.”


FIM DA PARTE I

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

che, aquele negócio da voz perder as características por causa do "desuso" é massa... repara, de manhã, logo após acordar, a voz já não é igual. Imagina se o loco fica um tempão sem falar, igual o guri do Miss Sunshine... qndo voltar, vai voltar tudo estrupiado!!! doidera... isso é que nem voz de fumante... num volta nunca mais...

2:24 PM  
Blogger Greyce Vargas said...

Introspectivo... no mínimo, nos faz parar um pouco e, enfim, pensar... è um ótimo texto pra quem ainda pode se dar ao luxo de pensar, de parar e pensar, porque estamos naquela época de que é muito tempo digitar a palavra "que", quanto mais ler um texto todo... interpretá-lo... degustá-lo, sentindo cada união de palavras... É uma pena não nos dar esse luxo... ainda bem que temos os teus textos que nos motivam a isso: a parar e pensar.



PS: tentei retomar o blog. Com as indagações de sempre... é um recomeço...

10:35 AM  
Anonymous Anonymous said...

acho que ele tava se referindo as estruturas cerebrais que controlam as funçoes da fala e não apenas das pregas vocais que, ao acordar, deixam a voz bastante grave..

viu.. eu li teu blog..

11:15 AM  

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