Wednesday, October 03, 2007

Prêmio

Sol quase o ano todo, uma praia de areia branca e mar azul, e nada, absolutamente nada, com o que se preocupar. Quem não gostaria de ter uma vida assim? Bem, eu gostaria muito. Mas Duda já estava em dúvida se aquela realmente era uma vida boa. Duda era uma garota bem esperta para a sua idade, e aos doze anos já tinha sua opinião bem formada sobre a ilha que habitava a noroeste da Oceania: era um saco! Sua rotina era formada por idas à escola e tardes a serem preenchidas com qualquer idéia que fosse. Mas depois de doze anos fazendo o que podia ela já não achava que houvesse alguma graça na ilha.
Sua família e os outros habitantes gostavam muito do lugar: a natureza os fazia sentirem mais puros, a vida mansa da praia os deixava leves e ninguém reclamava de nada. O pai de Duda, um senhor ligeiramente em forma, mas com uma saliente barriga – causada talvez pelo consumo excessivo de... água de coco – gostava de passar os fins de tarde na rede, observando o pôr-do-sol. Ah, esqueci de dizer: desfaça a imagem d’A Lagoa Azul. Não, a ilha de Duda possuía uma bela infra-estrutura. Escolas, hospital, polícia, tudo que era necessário para um cidadão se sentir satisfeito com seu habitat, mas preservava a natureza primordialmente. O pai dela era gerente da única agência bancária da pequena ilha, que ficava na região norte, onde estava a “urbanização” se é que se pode chamar assim, de resto, era tudo como sempre foi, e como eu já disse, ele gostava de ver os fins de tarde de sua rede.
Duda era curiosíssima, o que a ajudava a matar o tempo. Gostava de passear nas regiões mais desertas, com grandes áreas da mata, o que além de ajudar a aplacar o calor era tanto divertido quanto educativo. Num desses passeios pelas matas Duda descobriu uma cerca. Na verdade tropeçou nela, a cerca não era muito alta. Um joelho ralado e um pouco de terra na roupa não detiveram a pequena Duda, e sua mente rápida logo quis saber o que significava aquela cerca. O que de tão importante estava cercado no meio do mato??
A região de mata selvagem da ilha era livre, todos sabiam. Isso deixou Duda mais intrigada. Ela resolveu seguir a cerca, pois dali não conseguiu avistar nada diferente. Uns metros a frente, mais uns metros e mais uns, Duda viu o que parecia ser um telhado. Pulou a cerca! Uma casa no meio da mata e ninguém sabe?? Andou mais um pouco e rolou morro abaixo – uns quatro ou cinco metros de terra e grama, achou até divertido – e parou sentada em frente a um grande “quintal”, na verdade uma região da mata podada e tratada, constatou a pequena.
Começou a passear por ali e sentiu um cheiro delicioso, de frutas... amoras, uma torta. Torta de amoras?? Isto estava cada vez mais confuso... Aproximou-se da casa naquela clareira. O cheiro ficou mais forte. De repente Duda congelou. O susto que tomou conta de seu corpo paralisou-lhe as pernas e a fala.


- Fim da Parte I -

Uma mão em seu ombro segurou-a e perguntou: “Quem é você pequenina? Está procurando alguma coisa?” Meia hora depois, refeita do susto, Duda estava sentada à mesa com um casal muito simpático, saboreando a torta de amoras.
Hanz Müller, alemão de Munique, entre sessenta e setenta anos – sabe o Sílvio Santos? Não parece com ele. Lembra o Sivuca ou o Papai Noel, que dá no mesmo – e Roswitha Müller, uma alemã grandona, de pequeninos olhos azuis e grandes bochechas rosadas. Moravam na ilha há poucos anos, menos que os da idade de Duda. Saíram da Alemanha em busca de tranqüilidade. Herr Muller era maquinista da companhia de trens Deutschland, um trabalho gratificante, que ele até gostava, mas trinta anos de empresa estressam a qualquer um.
Frau Muller, ou apenas Oma Witha, como gostava de ser chamada porque se lembrava de seus dois netinhos, era uma cozinheira de mão cheia, e ajudava no orçamento fazendo strudels, tortas e outras delícias alemãs para vender. Tinham uma vida confortável, mas de muito trabalho. Herr Muller já andava cansado, e não era muito favorável aos avanços tecnológicos que os trens vinham sofrendo, embora trabalhasse muito bem com eles. Era um nostálgico, saudosista. Oma também já não tinha a mesma habilidade, mas suas guloseimas continuavam maravilhosas.
Um dia, sete números mudaram suas vidas. Herr Müller conservava o hábito de apostar na loteria desde muito jovem. Ganhou alguns poucos prêmios, mas nunca uma grande soma. Numa semana de muito frio em Munique, Herr Muller sentiu-se confiante e fez seu joguinho de sempre. Bem, era seu dia de sorte. Acertou sete números em setenta, sozinho. Ganhou o equivalente a uns bons milhões de reais, o suficiente para realizar um sonho: comprar uma bela casinha numa região quente e com praia, de preferência um paraíso. Conheceu a ilha de Duda num desses programas de viagens dos canais pagos (antes do prêmio), e decidiu, com Frau Muller, que se um dia tivesse meios, viveria ali.
Duda espantou-se. Como alguém poderia querer viver naquele tédio? Tudo bem, a ilha realmente era linda, mas era muito chata. O casal Müller riu da indignação da menina, não como piada, mas com interesse na opinião dela, afinal, que mundo conhecia a pequena Duda, que do alto dos seus doze anos nunca havia saído da ilha? O fato é que ficaram amigos, e Duda passava as tardes na casa deles, ouvindo fascinada as histórias de um mundo que não conhecia, e se deliciando com as guloseimas da Oma.

- Fim da Parte II -

Alguns anos passaram, a pequena cresceu, e seus anos de deliciosas conversas com os Müller surtiram um efeito inesperado: Duda, que adorava os doces da Oma, resolveu aprender a cozinhar. A própria Oma ensinou-lhe algumas receitas e truques. Duda estudou muito, tornou-se uma cozinheira internacional. Saiu da ilha em busca do mundo que não conhecia, a não ser pela histórias de Herr Muller, viajou por vários países, mas escolheu para trabalhar e viver a Alemanha, um país que aprendeu a amar ouvindo as histórias de Herr e Frau Müller. Lá conheceu Klaus, um piloto comercial bem sucedido, que se encantou por aquela moça inteligente e cheia de vitalidade.
A agitação das metrópoles transformaram Duda numa cidadã do mundo. O que fazia com que ela estivesse sempre um pouco estressada, correndo e sem tempo pra nada. Casaram-se, ela e Klaus, e algum tempo depois tiveram dois filhos. Muitos anos depois disso, já cansada, e com uma vida bem tranqüila, afinal era uma "doceira" famosa, Duda voltou a sua pequena ilha. Ela continuava lá, no mesmo lugar. O que não continuava eram seus queridos amigos, Hanz e Witha. Percorreu o mesmo caminho que fizera anos atrás, no meio da mata, pulo a cerca e se emocionou ao visitar aquela casa que lhe trazia as mais doces lembranças de sua infância. Respirou o ar fresco, e sentiu falta do cheiro doce que sempre envolveu aquela casa. Sem titubear, comprou a pequena casa, e a primeira coisa que fez ao se instalar foi uma torta de amoras.
Desenvolvido, escrito e gentilmente cedido por Aline Camargo.

3 Comments:

Blogger Felipe Conti said...

Até que ponto o perfeito serve pra todos? O que é a idealização de uma vida plena para alguém, pode ser a visão do tédio pra outra pessoa, e por aí vai...
Garota, tem idéia aí pra um baita dum conto - tanto em qualidade como em quantidade!
Valeu Pequena...

10:04 AM  
Blogger Mau Haas said...

Ser Humano é bicho triste... nunca tá contente... se chove, reclama. se faz calor, reclama. se faz frio, reclama. se mora numa cidade grande, é um caos. se mora num lugar pacato, não tem nada pra fazer.
é brabo!!!
é ser humano, reclama!

Parabéns pelo texto!
Abraço!

8:11 PM  
Blogger Mau Haas said...

Esqueci:

QUE FOTÃO BALA!

8:13 PM  

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