Tuesday, February 12, 2008

Sabotagem - Parte II de III

Pedro acordou mais cedo naquele sábado. Isso porque seu despertador – que era um apelido carinhoso de Bia – o acordou, caso contrário às 8 horas de sono diárias prosseguiriam sua marcha muda e obscura pelo seu subconsciente inerte. Vestiu-se, disse para Bia continuar descansando, beijou-a e disse que chegaria tarde. Boa sorte, disse ela meio sonâmbula e linda como só a mulher que tu amas consegue ser logo de manhã cedo.
Caminhava devagar, o pensamento vagava por paragens distantes, as memórias da infância eram constantemente despertadas por guris jogando bola em praticamente todas as ruas do seu antigo bairro. Voltar ali era um despertar e uma morte, todas as vezes. Quando virava a esquina de sua casa, o cheiro era inconfundível. O cheiro dos dias normais mais felizes de sua vida. Mas outras lembranças teimavam em rondar seus pensamentos.
Bateu palmas no portão e ninguém atendeu. Sorriu lembrando das brigas para atender chamados na frente de casa, nenhum dos irmãos gostava de “ver quem era”. Entrou na casa e não viu nem o pai nem a mãe. As paredes beges continuavam lá, a mesa de madeira na cozinha também. As cortinas, os armários, o sofá. Toda vez que entrava na antiga casa Pedro sentia um gelo percorrendo a espinha, como se uma memória de algo que pensou lá estivesse sendo abafada.
Seu pai estava sentado no pátio da casa, ouvindo rádio e fitando o nada. Quando viu Pedro não esboçou nenhuma reação, nem de espanto, alegria ou normalidade. Seguiu como foi a vida toda, inabalável.
- E daí pai, tudo bem?
- Tudo, e as gurias como tão?
- Tudo bem pai, a Sofia mandou um beijo pro vô.
- Quando vai trazer ela aqui?
- Logo. Pai preciso te contar um negócio e ver se o senhor pode me ajudar.
- Hum.
- É que... Bom pai, eu nunca sonhei, a minha vida toda! Desde que consigo lembrar meu sono é totalmente vazio. Nunca comentei contigo ou com a mãe porque achava isso normal, nunca me incomodou, mas agora tô ficando assustado com isso...
- Não vejo nada de mais nisso Pedro.
- Quando eu era pequeno, criança, vocês nunca notaram isso? Ou sei lá, aconteceu alguma coisa comigo quando eu dormia, ou algum trauma que eu não consiga lembrar?
- Lógico que não, tua infância foi ótima, quando era bebê não dava trabalho nenhum... E outra coisa, e daí que tu não sonhas? O que importa é sonhar quando está acordado, sonhar em dar uma vida melhor pra tua família, coisas assim. E nem sei por que tô te falando isso, que papo mais maluco guri! Veio até aqui só pra conversar sobre essa bobagem?
- Foi. A mãe não tá?
- Não, foi na missa eu acho... E te garanto que ia dizer a mesma coisa que eu, que tu tem que parar de imaginar um pouco e viver mais na realidade, como ela dizia quando tu era menor.
- Vocês sempre reclamaram disso e eu nunca entendi o porquê! Sempre trabalhei, nunca tive grandes planos... Falavam isso por causa das minhas histórias, dos meus desenhos...
- Ah, não vamos começar tudo de novo Pedro... Se só veio falar disso então não tenho mais o que conversar contigo. Manda um beijo pra Bia e pra Sofia.
E desse jeito mais uma tentativa de conversa entre Pedro e seu pai termina. Trinta anos e as coisas parecem não mudar. Vai abandonando a rua, a esquina, o bairro, como quem nunca mais olhará para trás, como quem desiste de se livrar dos seus medos e angústias e resolve abraça-los. As coisas são como são e azar, não vou mais me importar com nada além do que realmente importa: minha mulher, minha filha e eu mesmo. Sonhos, amigos, pais, nada disso sou eu, eu sou um e o resto é zero. Sentado num banco de praça por um punhado de horas esta foi a resolução de Pedro.

-x-

Chegando em casa à noite um silêncio apertou seu coração. A vida normal que levava estava desmoronando, podia sentir nas entranhas daquele silêncio pesado que consumia seu lar. Nem sinal de Bia, na sala ou na cozinha, então correu pro quarto de Sofia num desespero que ainda não havia experimentado na vida, e nem fazia idéia de onde vinha. Sofia estava de bruços, compenetrada num livro que havia ganhado de aniversário dos pais meses antes. Seu cabelo era o mesmo de Bia, uma coisa quase sobrenatural.
- Ainda acordada filha? Cadê a tua mãe?
- Já foi dormir, disse pra ti comer o que tem no fogão. Tô quase no final do livro pai, muito legal!
- Do que tu ta gostando mais?
- De como eles são amigos de verdade. Tu já leu esse livro pai?
- Já, mais ou menos quando tinha tua idade. Tua mãe também leu. Eles são amigos de verdade né?
- Sim. E parece que eles existiram mesmo né? Parece tudo de verdade!
- É verdade filha. Mas agora tá tarde, vou desligar a luz pra ti dormir. Boa noite filha, dorme bem.
- Boa noite pai.
Pedro esperou Sofia dormir. Ficou olhando a filha por longos minutos e pensando como ela era especial, e imaginando a mulher que ela seria. Ficou feliz – principalmente quando ouviu gemidos da menina e notou que ela estava sonhando - e se acalmou após o dia frustrante que tivera. Tudo que precisava agora era de um banho, dormir ao lado de sua mulher e uma noite de sono tranqüila. E isso ele tinha certeza que teria, assim como todas as outras de sua vida. Até aquele dia.

FIM DA PARTE II

4 Comments:

Blogger Mau Haas said...

Bah Tchê, tá muito massa isso... bom mesmo... tá bem melancólica esta parte II...
tu devia mandar estes lá pro David... acho que ele ia curtir....

só não demora tanto para pôr o próximo...

Té!!!
Todo mundo tenta, mas só o GREMIÃO pode ser PENTA!!!!

6:30 PM  
Anonymous Anonymous said...

Muito bom mesmo!!! De tão simples o cara tá cada vez mais complexo... Manda a proxima parte que o teu público tá curioso!!!!

Beijos...

"I love you 'till the end..."

6:50 PM  
Anonymous Anonymous said...

Tá mto massa. principalmente essa parte que fala da Sofia, e tb tudo q diz respeito da complexidade da relação entre pais e filhos! Me deixou até emotiva! hehehe
Ah, e akilo no meu blog, é só coisa de mulherzinha! hauhauaha
logo eu coloco alguma coisa nova!

5:53 AM  
Blogger Thiago Floriano said...

faz tempo que não passo aqui, mas to vivo! mandei um email dia desses pra ti, velho... hotmail no more? espero sair a parte III pra ler tudo, não gosto de parar a leitura na metade... abraço!!

4:30 PM  

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